quarta-feira, 30 de abril de 2014

Wesley Correia: Deus é Negro!




Wesley Correia


  



 

Noturno
Para Rita Santana


Ai de mim,
maniqueísta que fui,
dei de rolar na cama
a julgar-me diabólico.


Ai de mim,
que, em lúgubre estupidez,
dei de calar os sagrados
sons dos desenhos de minha alma.


Ai de mim,
que, com pés santos, quis contornar
a cartografia dos homens.

Eu ouvia – e recalcava – os outros sagrados.

Ai de mim, tolo no calvário,
dei de comprimir os pulmões
em esquálida opressão.


Ai de mim,
que desconhecia o mistério
a soprar nos ouvidos,
a fundar, nos meus vazios, outras impressões de consciência:

coisas de ancestralidade.



Roncó
 
Aos sete anos,
cobri-me de palha da costa
e sorri para minha mãe.


Minha mãe, que assim não me sabia,
(ou sempre soube e calou?)
sorriu diante do mistério
e se resignou.

Diante do mistério, não há dinheiro,
posses ou grandes construções.
Há, tão somente, o mistério que nos cala.

Minha mãe e eu,
muito pouco, sabemo-nos.
quase nada, falamo-nos.
bem pouco, fazemo-nos.

E no lugar, para além das razões,
Nanã abençoa os seus
e Omolu, quiçá, já a tenha perdoado.







Carta a Exu

Amigo,
tantas vezes me julguei perdido,
frágil, combalido,
e foste tu a me nortear.

Quantas vezes
foi teu riso a me guiar,
tua carnalidade
espantando as mortes
tão vivas em meu triste olhar.

Então, Amigo,
agora que já não te tenho inimigo,
deixa tudo o quanto não se move pra lá,
 e vem estar comigo.

Vem me dar a direção do ato seguinte,
vem apontar o rumo destas paixões.
Vem, Amigo, vamos incendiar,
e, juntos, conhecer o mistério dos vulcões.






Gratidão
Para Lande Onawale



A todos os que sangraram comigo,
dedico este Obi,
aberto em aláfia.

A todos os que tiveram seus laços de amor
espedaçados no horror do jugo,
aos que fizeram vida em meio à morte,
dedico este Obi,
aberto em aláfia.

Aos que foram rumo ao fim,
aos que desejaram fazê-lo,
aos que, em nome da liberdade coletiva,
aprisionaram a sua própria,
aos que desafiaram,
cantaram,
bailaram com seus deuses,
dedico este obi,
aberto em aláfia.

A Orumilá, Odudua, Yá Massê Malê,
Na direção do sempre,
dos caminhos,
dos secretos,
da esperança.


Ao Reino de Ifá,
dedico meu coração,
aberto em aláfia
.





A casa da força

Eu moro onde nasce o vento
que, num instante de fúria, arranca árvores,
postes, telhados, pensamentos.


Eu moro onde principia a fonte
e a vejo, em festa, desaguar no mar.
Vejo o mundo diante dela se curvar.


Eu moro onde abrasam as paixões,
onde incendeiam os corações,
onde se queima de amor.


Eu moro embaixo do fundo da terra,
eu faço brotar, crescer e frutificar o sonho,
eu dou o retorno ao profundo dos mundos.




 







Originalidade é o ponto  alto do livro 
“Deus é Negro”



“A literatura liberta”. Essa é uma das frases que tem ecoado nos eventos de divulgação do livro “Deus é Negro”, do poeta Wesley Correia. Ditas pelo próprio autor, as palavras ajudam a definir a obra que subverte a lógica de um Deus branco e abre espaço para a diversidade.

 Com liberdade, coragem e leveza, Correia faz soar, nesta obra, a voz negra historicamente amordaçada. O livro é dividido em três seções: Da Partida, que dá espaço ao eu-negro; Da Chegada, onde as memórias da luta anti-escrava são avivadas; e Da Multiplicação, que aponta para um fenômeno de reconfigurações identitárias. Para compreender melhor as textualidades afro-brasileiras e africanas, é possível consultar, nas últimas páginas, o “pequeno glossário crioulo”.


Deus é Negro, desde o lançamento na última Bienal do Livro da Bahia passando pela Universidade do Recôncavo da Bahia e pela Universidade do Estado da Bahia, tem sido recebido com festa e prestigiado por dezenas de pessoas, a exemplo do poeta e cantor Juraci Tavares, de 64 anos.“Wesley é um intelectual preocupado com as questões humanas, sobretudo, negras. Esta obra deve constar em diversas bibliotecas, as pessoas precisam ter acesso a esse conteúdo que, de forma poética, traz a possibilidade da existência de vários deuses, abre espaço para a pluralidade. É emocionante”, contou.


Admiradora de Correia, a poetisa Vanesca Ferreira não poupou elogios. “ As poesias dele enchem nossa realidade de lirismo, sem deixar de lado as questões sociais. É impossível lê-lo e não se encantar”, disse.


No dia em que lançou “Deus  é negro”, na XI Bienal do Livro da Bahia, Wesley Correia participou, junto com o autor Lima Trindade, de um bate papo mediado pela coordenadora de Literatura da Fundação Cultural do Estado da Bahia (FUNCEB), Milena Britto. O  evento deu ao público a oportunidade de conhecer o processo de realização do livro, navegar pelas entrelinhas da obra. “Uma coisa que tenho aprendido é respeitar o tempo da literatura. Eu comecei a escrever os poemas desse livro em 2007, mas o meu fazer poético é um exercício muito grande. Meus poemas passam por uma maturação, eu os reescrevo várias vezes até que eles fiquem realmente prontos”, disse Wesley.


O resultado desse processo pode ser degustado pelo público, durante os eventos de divulgação do livro, quando, sem deixar de lado a emoção, Wesley lê alguns dos poemas.  Os aplausos dão ao poeta a prova de que o esforço tem valido a pena. “A poesia é um canal capaz de tocar as pessoas sobre assuntos que são ‘jogados embaixo do tapete’. Sou um poeta, sou um militante. Inegavelmente, na minha obra, esses horizontes fluem. E o que é melhor: de forma natural, tranquila e divina”, comenta.


Para a produtora cultural Milena Britto a leitura é uma experiência necessária. “As poesias surpreendem, são elaboradas, possuem um ritmo sedutor. Li e recomendo esta obra que tem, como ponto alto, a originalidade”, disse. O livro será lançado nos Estados Unidos, na Espanha e França, por isso ganhará tradução para o inglês, espanhol e francês, no primeiro semestre de 2014.




“Deus é Negro”, que ganhou o último edital setorial de Literatura da FUNCEB através do Fundo de Cultura, deve ser distribuído gratuitamente para as principais bibliotecas de Salvador e do interior do estado a partir de Fevereiro de 2014, mesmo período em que será vendido, a preços populares, em livrarias e bancas de revistas. Quem não quiser esperar até lá para adquirir seu exemplar, pode solicitar diretamente com a Pinaúna Editora através do e-mail: atendimento@pinaunaeditora.com.br.




O autor é natural do município de Cruz das Almas, no recôncavo baiano, Wesley Correia tem atuado em torno de questões relacionadas ao combate ao racismo e a valorização da identidade e da cultura negra. Doutorando em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia e coordenador de pós-graduação em Estudos Étnicos e Raciais do Instituto Federal da Bahia – IFBA, Correia é autor, também, do livro Pausa para um Beijo e outros poemas, tem participado de diversas coletâneas como poeta e ficcionista, e possui mais três obras em fase de produção.




Carla Magnólia

Assessoria de imprensa










Poesia, diáspora e Identidade: Notas sobre um Deus Negro

Marielson Carvalho1

Sonia Brito2




Deus é Negro (Ed. Pinaúna, 2013), segundo livro de Wesley Correia, descende de uma linhagem de excelentes grãos poéticos, cuja substância apresenta aditivos mais afirmativos, reinstaurando uma nova variante simbólica, mas sem perder o norte de uma visibilidade discursiva que é essencial em sua autoria: o eu-enunciador negro. Neste livro, a referência negra é a própria e exata medida dos alicerces da obra, a começar pelo título, que subverte ironicamente uma idealização cristã sobre a imagem e a semelhança dos homens em relação a Deus. Outra ideia de gênesis é operada aqui. A mudança não acontece apenas na cor, mas no sentido das características intangíveis de Deus. A onipotência, a onisciência e a onipresença encerram em Deus é Negro menos a sensação de vigilância e opressão, e mais de comunhão e amparo, pois secularmente, o homem negro sempre se sentiu um dessemelhado dessa humanidade que aquele Deus apregoava. Divididos em três seções, tematicamente bem definidas, mas que entre si dialogam simbólica e conceitualmente, os poemas do livro instauram uma ancestralidade aviltada pelos deuses dos outros em um tempo-espaço reconfigurado todo nosso. Na primeira seção, Da partida, o poema “A casa da força” é um abre-caminho que dá a direção e legitima o percurso do eu-negro em todo o livro. Do poema ecoa a matéria verbal que se fará ouvir em forma de canto de chamamento, como um tambor a reunir em sua vibração as vozes da diáspora. No poema seguinte, “Oração”, os elementos vitais se desdobram em outras forças, assim como dinamizam outras verdades. A saudação aos orixás é um pedido de licença para que adentremos à Casa Real, onde cada um deles tem assento e domínio, e por sentimento de pertença a uma simbologia de vida, nos sentimos abrigados e protegidos (“Suaves bálsamos, singelos de amor”). Ao leitor, as portas de Deus é negro estão abertas. Percorrer os outros poemas da primeira seção será uma experiência singular de tradução da tradição a partir das interações do sujeito poético com as referências de uma africanidade pessoal e intransferível, de proximidade indissociável entre o sagrado e o humano, como se vê em “Carta a Exu” (“Amigo,/tantas vezes me julguei perdido,/frágil, combalido,/e foste tu a me nortear”), “Gratidão” (“A todos que sangraram comigo,/ dedico este Obi,/ aberto em aláfia”) e “Prece a São Lázaro” (“Meu São Lazinho,/ proteja a minha casa,/ o meu corpo,/ o meu povo”). Na seção Da chegada, o eu-negro realça a memória da escravidão e da luta anti-escrava e  racista cujas narrativas foram construídas por personagens míticos e reais, anônimos e conhecidos, cativos e libertos, negros e mestiços, sozinhos ou em grupo, mas que deixaram um legado de combatividade e resistência. Poemas como “Entre esquecer e lembrar” nos dá a medida exata de como Wesley Correia flagra, em quatro versos curtos, a permanência de um instante com a delicadeza para não tirar da cena o que tem de mais pungente e revoltante. Nada falta ou exagera. É o menor poema da seção, mas parece enfeixar todos os outros. A mãe cala no tronco, mas o choro do negrinho é como se uma revolta escrava já nascesse ali, na senzala. Deus é negro e está no meio de nós, multiplicado em territórios negros cujas representações se hibridizam intermitentemente. Na terceira seção, Da multiplicação, a epígrafe de Gilberto Gil e Waly Salomão nos aponta para um eu-negro capaz de fazer do próprio processo libertário um fenômeno de (re)configurações identitárias, como em “A casa de Inácio”: “É que em sendo brasileiro/de sangue, de natural e de lugar, /Inácio ferve noutras impressões de identidade, /revela-se em novas expressões de alteridade, /e é um sendo muitos, /tendo, em si, vários simultâneos.” Nesta última parte de Deus é negro, poemas como “Esplendor”, que faz uma homenagem a personalidades negras de diversas nacionalidades e experiências (“Constelação de finíssimo clarão”), e “Rap do Mano Leandro”, que sintoniza no mesmo dial música e poesia para falar de violência racial contra a população negra: “Os ‘cara’ não perdoa,/Se nasceu no morro, é pobre e preto,/ É como bicho à toa,/ sem chão, sem grana, sem grão./ Dizem que matam pra/ limpar a sociedade,/ E não importa sexo nem idade, / É pura crueldade. / Então se liga, falou!/ ‘É nóis’, falou!/ ‘É nóis’, parceiro.”, consolidam a certeza de que este livro é um excelente resultado de criação não somente literária, mas também intelectual e política, devido mesmo ao trabalho com que o autor lidou com diferentes formas e recursos poéticos, assim como teorias e estudos. O livro ainda traz um pequeno glossário com termos usados nas religiões de matrizes africanas, o que demonstra tanto a intenção do autor em dividir com o leitor sua intimidade com as textualidades afro-brasileiras e africanas quanto ofertar, pela via da poesia, uma alternativa pedagógica no que diz respeito à linguagem utilizada em algumas comunidades tradicionais. Conceitos fundamentais da história, o Espaço e o Tempo em Deus é Negro marcam o reconhecimento da ancestralidade africana e da antecedência à situação das partidas. Sob o olhar do tempo historiográfico, identifica-se nestes elementos simbólicos o continente africano no contexto da colonização moderna europeia, quando expressiva parcela de sua população sofreu terríveis e dolorosos exílios. Desumanizado desde a sofrível travessia marítima em tumbeiros, até a imposição da condição de mercadoria, o africano escravizado serviu, durante séculos, aos interesses mercantilistas de uma burguesia europeia e de uma aristocracia colonial, ansiosas de enriquecimento fácil na exploração da terra americana e da gente africana. A demanda pelo trabalho compulsório na América, ligada, essencialmente, à necessidade mercantilista da produção em larga escala, produziu um lucrativo e próspero mercado de escravos, tornando-se um elemento estrutural nos três continentes. Na América Portuguesa, por exemplo, permitirá a formação e expansão de uma estrutura social sustentada na exploração do trabalho escravo; na Europa atuará como importante fator de acumulação de capital e, finalmente, nas Áfricas servirá como elemento definidor do destino dos Estados e dos diversos grupos sociais. Em Deus é Negro a utilização da linguagem metafórica, inerente à literatura poética, identifica elementos dessa subversão e inversão de uma ordem sócio-ideológica violentamente imposta. Da desconcertante afirmação do título à construção de outra ideia de gênesis que subverte o ideário cristão de um Deus à imagem e semelhança do branco dominador; da saudação aos orixás no poema “Oração” e da quase unidade do humano e do sagrado de “Carta a Exu” à desconstrução do preconceituoso mito religioso em “Exu não é o diabo, não”: em todos eles, exalta-se a tradição e afirmam-se as referências de uma africanidade essencial ao reconhecimento do eu-negro. Nesse canto de amor e reverência às populações diaspóricas, Wesley Correia designa a luta combatente de um povo que não se deixou submisso, que inverteu uma ordem secularmente estabelecida e consegue demarcar um fantástico encontro nessas encruzilhadas nas quais Deus só pode ser Negro.



1- Docente da UNEB e doutorando em Literatura e Cultura (UFBA). É autor do livro: "Acontece que eu sou baiano: identidade e memória cultural no cancioneiro de Dorival Caymmi" (EDUNEB, 2010).

2- Historiadora e Diretora do Departamento de Ciências Humanas e Linguagens do IFBA. É mestre em Pedagogia Profissional (IPE).







Referências:



ALBUQUERQUE, Wlamyra R. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil.

Companhia das Letras, 2009.



_____________ e FRAGA FILHO, Walter. Uma história do Negro no Brasil. Salvador:

EDUFBA, 2009.



CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo Caminho. 3ª ed. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2002.



CORRÊA, Maria de Nazaré Fonseca. Literatura, História e Memória: uma leitura

benjaminiana da poesia de Mario Benedetti.

In: http://unb.revistaintercambio.net.br/24h/pessoa/temp/anexo/1/283/239.pdf (acessado em 26/06/2013.)



CORREIA, Wesley. Deus é Negro – Da partida, da chegada, da multiplicação. Salvador: Ed.

Pinaúna, 2013.



GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1974.

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2003.



MATTOSO, Kátia. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982.



MORAES FILHO, Mello. Festas e tradições populares do Brasil, 3ª edição. Rio de Janeiro:

F.Briguiet & Cia. Editores, 1946.



PESAVENTO, Sandra Jatahy. Fronteiras da ficção: diálogos com a história e a literatura. In:

SIMPÓSIO NACIONAL DA ANPUH. História: Fronteiras, 20., 2009. Anais... São Paulo:



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SLENES, Robert. "'Malungu ngoma vem!'África coberta e descoberta no Brasil". Revista USP,

n.12, dez/jan/fev 1991-1992, pp.48-67.



______. Na senzala uma flor: as esperanças e as recordações na formação da família escrava –

Brasil sudeste, século XIX, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999.




Fotos: Carol Garcia